Quarto.
Em 1928, Virginia Woolf declara que para escrever ficção, uma mulher tem de ter dinheiro e um quarto só seu. Em 2023, Ana V.R., parece declarar, pela poética do seu trabalho, que tornar um quarto só seu – quarto em sentido figurado, quarto/espaço/lugar/sala/silo – pode ser a condição para a construção de ficções. Narrativas só suas que estão, por um lado, recheadas de memórias, de outros, de passados desconhecidos, e por outro, plenos de possíveis futuros por conhecer, onde nós constamos como aliados dessa especulação vívida e imaginária.
Suspenso.
As suas imagens fragmento – chamemos-lhes assim porque independentemente de serem fotográficas, videográficas ou esculturais – tratam de partir o contínuo, de paralisar o que paira sem parar; estão em suspenso. São suspensões dos movimentos contínuos que não controlamos; da respiração, do momento, da luz, do ar que passa, da matéria que pesa, do tempo das sementes que nascem, e que paradoxalmente só damos conta de que não as conseguimos parar quando estamos parados.
Deslocação.
Ainda que muitas obras desta respiração só aparentemente sombria sejam quietas, sem tempo, elas contradizem insistentemente essa natureza. Todas elas (sejam fotografias, pinturas ou objetos) encontram-se numa condição partilhada de viagem. Estão em deslocação, ou melhor, abordam, propõem olhar a deslocação. Deslocação de sombras, de linhas, de pesos, de fibras, de lugares dentro do espaço e de olhares dentro desses lugares.
Colunas.
E ainda as colunas que desde sempre sustentam o mundo, árvores construídas pela mão humana que de tanta força para erguer quase conquistam a eternidade. Por volta de 600 anos a.C. o filósofo e geógrafo pré-socrático Anaximandro acreditava que a Terra era uma coluna truncada no seio do cosmos, circundada por várias rodas cósmicas. Esta imagem, convocada neste lugar faz pairar sobre esta sala de colunas, quarto de guardar, sobre estas colunas que seguram o que queremos segurar, um espectro de princípio de todas as coisas.
Repetição.
Peneiras de momentos, pausas de movimentos, testemunhas das repetições do acontecer no seu sentido mais universal; carne portanto da repetição originária que Ana V.R. remete a Jacques Derrida e que Jacques Derrida remete para a estruturação da linguagem e do pensamento, pois sem repetição não há construção, não há deslocação, não há suspensão, não há quarto, e sem quarto não há ficção.
Sara Franqueira, 2023