Com esta exposição Ana Vieira Ribeiro introduz um corpo de trabalho inovador e simultaneamente muito coerente face ao conjunto de obras anteriormente realizadas: trata-se do desenrolar da sua reflexão sobre os conceitos de tempo e de espaço, enquanto condições prévias e fundamentais à vida humana. Esta nova serie – subnigrum – que apresenta “fronteira” como primeiro capítulo, consolida a relação da artista com os meios digitais, incorporando na sua reflexão práticas contemporâneas como a fotografia e o vídeo digital, em diálogo com a instalação e a pintura.
Assim, apropriando-se da arquitectura e objectos de uso quotidiano, Ana Vieira Ribeiro parte da sua existência real, em favor da sua decomposição e reconfiguração com o fito de novos entendimentos artísticos.
Se o tempo é compreendido como a duração relativa das coisas que cria no humano a ideia de presente, passado e futuro, por sua vez, o espaço é entendido como o lugar geográfico sobre o qual, é possível agir através da deslocação física. Desta diferenciação Lagneau terá afirmado, “o espaço [como] sinal do nosso poder, [e] o tempo [como] sinal da nossa impotência”1. Mas a dimensão que estes dois conceitos conhecem, na obra da artista é como que desmontada pela sua intervenção e consecutivo entendimento destes como um rastro2 — como um ponto de vista perspéctico3 de continuidade do agora e do não-agora, onde o presente deixa de ser tomado como ponto de charneira entre passado e futuro, para passar a ser um lugar subjectivo, definido pela presença e sensibilidade do espectador.
A obra surge assim dentro de uma largura espácio-temporal imprecisa, como uma sucessão de actos onde os personagens emergem da sombra para silenciosa e pausadamente se revelarem ao olhar do espectador. Estes personagens são, pois, os elementos representados pela pintura ou os capturados pela fotografia — as janelas, mesas, cadeiras, isto é, os elementos da paisagem humana quotidiana. Quanto aos objectos recolhidos — esses verdadeiros artefactos, são retirados da sua função original para se tornarem, através do reposicionamento e disposição composicional, contentores de um novo sentido artístico, desafiando a curiosidade e a memória.
A uma outra presença capital corresponde a luz, que os elementos desvela. Os seus raios luminosos, envoltos na escuridão, atestam a evidente referência ao chiaroscuro do Barroco, começando na pintura para se propagar às demais conformações apresentadas. A luz, no seu jogo com a escuridão manifesta-se, como a protagonista: firma a negociação entre o esperado e o inesperado, estabelece o convite à deslocação do espectador, possibilitando a abertura a vários pontos de vista através dos quais o olhar pode conhecer uma efectiva transformação.
O papel preponderante da luz e do tempo, na sua íntima relação com o lugar, evidencia-se ainda no vídeo “rastro”, que toma como ponto de partida uma estação ferroviária e também antiga alfândega, agora devoluta. Pela documentação da agência da luz no seu interior, forma-se a imagem do tempo e da sua passagem. À reflexão sobre o peso do tempo anexa-se, assim, a reflexão sobre a drástica transição de certos espaços, com a sua passagem a “não-lugares”, tal como proposto por Augé4, aos quais ninguém verdadeiramente pertence.
Deste modo, do conjunto de obras em “subnigrum — fronteira” apresentadas, ressalta ainda a mediação entre a ficção e a memória, entre a criação artística e a abertura de um campo documental e especulativo, como uma menção da arte à arqueologia.
Andreia César